Mercado de franquias como palco de práticas de crimes contra livre concorrência e ordem econômica

O mercado de franchising é de longe o que mais aquece nossa economia, demonstrando considerável crescimento mesmo em tempos de crise.

Regulamentado por lei especial, a Lei 13.966/19 em seu artigo 1° define a franquia como sendo modelo de negócio através do qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta.

Aos olhos da lei, qualquer modelo de negócios diferente disso não é franquia empresarial.

Na prática, a ideia é que o objeto do franqueamento seja um modelo de negócios já em tese estruturado, testado e aprovado pelo franqueador no mercado como sendo um projeto para investimento com risco calculado e real potencial de ser alcançado o sucesso.

Natureza jurídica da relação

Sob a ótica da doutrina, a natureza jurídica da relação entre franqueados e franqueadores, embora eminentemente empresarial, é de subordinação.

Em outras palavras, significa dizer que o franqueador, enquanto detentor do know-how e idealizador das regras e padrões a serem seguidos pelos franqueados acaba por ser o principal responsável direto pelo aviamento do franqueado considerando que este, na imensa maioria das vezes, é leigo no assunto e nunca empreendeu na vida, desconhecendo o mercado e aspectos básicos de gestão empresarial do negócio.

Nesse contexto, importante também o entendimento pela existência de uma proposta de relação ganha-ganha, com vistas ao crescimento conjunto — se de um lado a franqueadora deve promover o fomento, a maximização e expansão de seu negócio, marca, produto ou serviço, e aviamento dos franqueados, de outro, os franqueados devem desenvolver o modelo de negócios da franqueadora, já consolidado no mercado conforme as regras e padrões definidos em contrato.

Spacca

Do mesmo modo, espera-se ainda que as partes tenham seu comportamento e práticas empresariais pautadas pelos princípios gerais que regem os contratos, notadamente os princípios da probidade e da boa-fé objetiva dos quais decorrem ainda os deveres anexos de transparência, lealdade e cooperação que devem reger toda e qualquer relação contratual, associados a função social que exercem os contratos.

É o mesmo que dizer que um não deve adotar conduta que possa prejudicar e sim favorecer a outra, haja vista se tratar de parceiros nesta relação de “ganha-ganha”. Caso contrário, qual vantagem para o investidor optar por investir em uma franquia?

Prejuízo na condução dos negócios

Infelizmente não é o que há muitos anos se vê acontecer no franchising brasileiro.

É fato notório que muitos franqueados, inclusive de redes de marcas de grande renome, que vem enfrentando dificuldades e prejuízos na condução dos negócios, tratando-se de problemas com raízes internas, ligadas ao modelo de negócios idealizado pelo franqueador que não é transparente nas negociações.

Existem franqueadores que acabam por abusar de sua posição dominante no contrato fazendo impor regras que obrigam franqueados a adquirirem insumos e produtos exclusivamente da empresa franqueadora ou de fornecedores homologados que muitas vezes praticam preços acima da media de mercado encarecendo os custos prejudicando a saúde financeira da operação, contrariando diferencial ou vantagem competitiva para os franqueados, contrariando oferta e propaganda da franquia.

Trata-se de cenário que convoca todos à necessária reflexão sobre o futuro do franchising brasileiro diante de práticas predatórias de algumas franqueadoras com possível enquadramento de sua conduta à crimes contra a ordem econômica face o constante abuso de sua posição dominante no contrato em prejuízo à livre concorrência, manipulando o mercado em benefício próprio e não da rede e que traz reflexos negativos também ao mercado geral.

Há relatos de franqueados de várias de diversas Redes no mercado de franquias que vem sofrendo com tais práticas ilegais de suas franqueadoras que obrigam a aquisição de produtos ou serviços não exclusivos através de seus fornecedores homologados sob discurso de manutenção da qualidade e padrões da franquia, contudo, com preços muito acima do valor médio de mercado, chegando a ser abusivos.

Dizemos que uma empresa age de maneira abusiva quando em razão de sua posição dominante no mercado manipulando preços e condições de venda.

O abuso dessa posição ocorre quando a empresa utiliza esse poder de forma inadequada, em prejuízo ao direito à livre concorrência — princípio fundamental da ordem econômica protegida pela Constituição e que existe para garantir que empresas e indivíduos possam competir livremente no mercado, sem restrições indevidas.

Transparência em informações

Embora a Lei de Franquias determina que a franqueadora apresente ao candidato, futuro franqueado, documento denominado de Circular de Oferta de Franquia contendo informações claras e detalhadas quanto à obrigação do franqueado de adquirir quaisquer bens, serviços ou insumos necessários à implantação, operação ou administração de sua franquia apenas de fornecedores indicados e aprovados pelo franqueador, incluindo relação completa desses fornecedores, na prática não se observa à risca os demais direitos envolvidos.

O que tem se visto são franqueadoras que distorcem ou omitem fatos e informações no documento, prejudicando a investigação mais aprofundada pelo candidato sobre a realidade da franquia no que diz respeito as políticas comerciais e quem são as pessoas e empresas indicadas pela franqueadora como sendo fornecedores homologados e obrigatórios que praticam preços abusivos por traz da logística de abastecimento das redes, tendo acesso apenas depois quando já não há mais opção de desistir do negócio — pelo menos não sem maiores prejuízos e sem o risco de sofrer penalidades.

Armadilha contratual

Curiosamente, ao se analisar os relatos mais a fundo, identificamos redes de franquias que possuem como fornecedores homologados pessoas e empresas que pertencem ao próprio franqueador, seus parentes ou amigos com os quais possuem políticas comerciais que ignoram a realidade e necessidades do negócio, ignoram as leis, beneficiando exclusivamente o próprio franqueador e pessoas à ele ligadas e não aos franqueados que ficam na ponta, os quais se sentem enganados, além de prejudicam o mercado em geral.

Esses franqueados carregam o sentimento de quem caiu em uma armadilha contratual aparentemente legalizada tendo que se submeter a prática de preços acima da média de mercado, baixa qualidade de produtos, imposição de pedido mínimo e prazos que não atendem a dinâmica dos negócios, sem a opção de recorrer à outros fornecedores com melhor produtos e políticas de credito mais vantajosas — problemas que na maioria das vezes ainda se agravam com a falta de suporte e know-how do franqueador para operação do negócio.

Ressalta-se que nada há de errado no referido modus operandi dessas franqueadoras se na prática não houvesse prejuízos aos negócios e à ordem econômica, sendo necessária cautela por parte de franqueadores que adotam esse tipo de modelo, pois uma vez que possui contrato firmado junto a seus franqueados através do qual assume em sua grande maioria, ainda que não de maneira expressa mas implícita, o dever de atuar no desenvolvimento de uma relação de fornecedores homologados que atenda as necessidades do negócio.

Isso implica no seu dever de agir, fazendo substituir aqueles que não oferecem diferencial competitivo e que representem risco aos negócios e à sociedade, além do fato de que não agindo dessa forma incorrem em desvio de finalidade tornando-se agentes da prática de crimes contra a ordem econômica.

Crime contra ordem econômica

Tamanha é a importância do tema e preocupação do legislador com esse tipo de prática que a Lei nº 8.137/90, alterada pela Lei 12.529/11, e à qual o mercado de franchising também se submete, enquadra como crimes contra a ordem econômica com pena de reclusão, de dois a cinco anos e multa as seguintes condutas:

  1. o abuso de poder econômico que resulte na dominação ou eliminação, total ou parcial, da concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo entre empresas em prejuízo à coletividade;
  2. a formação de acordo, convênio, ajuste ou aliança, visando à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas, ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas, ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores.

Diante de tais análises concluímos que, ao contrário do que defende parcela da sociedade, o problema do franchising brasileiro não é a falta de leis, pois além da lei especial de franquias tem-se ainda todo um ordenamento jurídico para sua proteção à disposição, mas a falta de colocação do assunto em pauta como tema relevante e de interesse geral da sociedade, a falta de defesa e correta aplicação.

A identificação e apuração de práticas como as que vem sendo identificadas no mercado de franchising é mais do que relevante — é urgente! —, haja vista o crescente número de franqueados cujos relatos de abuso por parte de suas franqueadoras vem se tornando alarmantes e convidam à toda sociedade a reflexão sobre o futuro do franchising brasileiro e necessidade de mudança, resgatando a integridade, segurança e credibilidade do sistema.

Não se pode jamais admitir que contratos empresariais venham a ser utilizados como mecanismo capaz de autorizar empresas franqueadoras de burlar as leis em prejuízo de seus fraqueados e do interesse público que inegavelmente também acaba por ser gravemente afetado pelo desvirtuamento no uso de cláusulas contratuais estabelecendo regras de exclusividade no fornecimento sob discurso manutenção do padrão e qualidade das franquias padronização, face potencial de risco de práticas de crimes contrato a livre concorrência e ordem econômica.

_______________________

Referências bibliográficas

BRASIL. Lei nº 13.966, de 26 de dezembro de 2019, que dispõe sobre o sistema de franquia empresarial. Disponível aqui.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil Brasileiro. Disponível aqui.

RAMOS, André Luiz Cruz. Direito empresarial. 7. ed. São Paulo: Forense 2017. Disponível aqui.

Coelho, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 16. ed. São Paulo: Saraiva. 2015. Acervo Pessoal.

Coelho, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial: direito de empresa. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, Acervo Pessoal.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível aqui.

BRASIL. Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponível aqui.

Compartilhe este artigo nas redes sociais

WhatsApp
Facebook
Telegram
Twitter

Últimos posts:

6 dias ago

“ O Sistema de Franquia precisa ser fortalecido, ele funciona, porém existe uma parte fragilizada que são os franqueados… Em muitos momentos…

7 dias ago

“Estamos no Sistema de Franquia desde 1979 e durante quatro décadas presenciamos inúmeros conflitos entre franqueados e franqueadores. O modelo de negócio…

1 semana ago

Hortênsia Maria Alves de Lucena, Diretora de Mercado da ASBRAF, ex-franqueada do Boticário de uma rede de 6 lojas nos municípios de…

Posts relacionados:

5 meses ago

O Grupo Cacau Show tem investido em outro mercado, além dos chocolates: o de entretenimento. Após comprar todas as marcas e ativos do Grupo Playcenter,…

5 meses ago

Prefeituras e órgãos de todo Brasil podem aderir à plataforma de comércio eletrônico público O governo federal lança, nesta terça-feira, 11 de…

7 meses ago

Por: Mariana SchreiberDa BBC News Brasil em Brasília O acordo entre Mercosul e União Europeia terá impactos predominantemente positivos sobre a economia brasileira e…