A pandemia da COVID-19, causada pelo coronavírus, ensejou no Brasil medidas governamentais diversificadas de Municípios, Estados e União Federal. Não se verificam padrões de determinações ou recomendações; falta maestro à orquestra. No comércio as determinações variam de fechamento absoluto dos estabelecimentos, ressalvado o essencial, a nenhum controle.
O essencial decorre das necessidades básicas, que variam a todo momento com exacerbado grau de subjetividade. A título de exemplo, metalurgia não é essencial, desde que a indústria não produza componentes de equipamento hospitalar, ou não produza certo maquinário necessário à produção do tal componente.
As relações sociais e comerciais são complexas e difusas, os segmentos se permeiam, se entrelaçam sem maiores compreensões cartesianas e não há condições de definir o essencial “por decreto”, senão pelo bom senso, o que se mostra por demais subjetivo, intrínseco a cada cidadão.
No momento de dificuldade enfrentado as diversidades se destacam mais. Não se tem dúvida que alguns comércios lucram mais neste momento, enquanto a maioria amarga prejuízos. Com base em estudo do varejo brasileiro realizado pela Cielo, na comparação dos meses de março de 2019 e 2020, houve aumento médio de 4,1% no desempenho das vendas de bens não duráveis, enquanto para os duráveis houve queda de 31,2% e para os serviços queda de 43,8%. Nestes três grandes setores a linha de tendência é de queda.
Empreendedores de shopping centers saíram na frente suspendendo o pagamento de aluguéis ou oferecendo descontos que alcançam também o fundo de promoção e as despesas rateáveis de cada empreendimento, vulgarmente denominadas condomínio, mas com a certeza de cobrar/receber no futuro os valores “dispensados” neste momento. Significa: lojistas arcando exclusivamente com os prejuízos decorrentes da pandemia em tempo diverso.
Outra manchete é “Lojas do MacDonald’s vão pagar aluguel proporcional ao faturamento”. A maior operadora desta rede de fast-food no Brasil informou aos proprietários dos imóveis de suas lojas que pagará aluguel proporcional ao faturamento durante o período de crise.
Associações de lojistas, franqueados e empreendedores se manifestam de acordo com seus interesses e o poder público entra em cena. Decisões liminares surgiram para determinar a suspensão de pagamentos de aluguéis ou a cobrança pelo aluguel percentual e proporcional ao faturamento dispensando-se o aluguel mínimo nas locações em shoppings. O Senado Federal apresenta o Projeto de Lei 1179/2020; entre outras proíbe liminares para desocupação de imóveis urbanos nas ações de despejo propostas a partir de 20 de março de 2020.
A civilização suportou diversas calamidades durante sua existência, a construção do Direito Civil é milenar e, à evidência, há fontes de direito, sobretudo legislação, suficientes a solucionar os conflitos de interesses advindos de calamidades.
Em se tratando de locação, extraem-se do artigo 22, incisos I a III, da Lei do Inquilinato (8.245/1991) as obrigações precípuas do locador de entregar o imóvel em estado de servir ao uso a que se destina, garantir o uso pacífico, manter a forma e o destino do imóvel. Por força de um evento incerto, imprevisível e incontrolável quantos aos efeitos, aos contratantes o uso imóvel para a finalidade comércio se tornou impossível ou limitado, ao menos de forma pacífica. Há perda temporária do objeto contratual, não pode o locador cumprir suas obrigações primordiais e, por conseguinte, não está o inquilino obrigado a cumprir a contraprestação aluguel e demais encargos da locação, até porque não fatura.
Por força do artigo 393 do Código Civil Brasileiro, nas hipóteses de caso fortuito ou força maior o devedor (da obrigação de pagar o aluguel) não responde pelos prejuízos e, nos termos do artigo 396 do mesmo diploma legal, não incorre em mora; ou seja, não se considera em atraso, pois a obrigação se tornou inexigível.
À falta de mora (ou atraso) não pode ser decretado despejo por evidente ausência da “fumaça de bom direito”. Mostra-se, pois, desnecessário proibir liminares conforme proposição do Senado Federal. Além disso, a proibição atinge ações ajuizadas depois de determinada data, mas nada impede que o inadimplemento – sem a excludente do caso fortuito ou força maior – tenha ocorrido antes da data fixada.
Não bastasse, os requisitos à concessão de liminares encontram-se estampados no Código de Processo Civil para regular atividade jurisdicional. A depender de aprofundado estudo, a determinação de não concessão de liminar invade excessivamente a esfera de atuação do Poder Judiciário, mormente quando há regras suficientes à cognição.
De outra quadra, o legislador pátrio adotou a Teoria da Imprevisão, utilizada no período pós-guerras mundiais, no artigo 317 do Código Civil. Autorizou ao juiz corrigir o valor da prestação quando sobrevier desproporção manifesta entre o valor fixado ao início e o do momento de seu cumprimento.
À evidência o contrato deve ser cumprido; é o que decorre da milenar “pacta sunt servanda”. Todavia, também por óbvio, considera-se o estado das coisas ao momento de sua celebração – “rebus sic standibus”. A mudança daquele estado por motivos incontroláveis e de resultados imprevisíveis permite a adequação do valor da contraprestação aluguel.
Com base nestas breves, sucintas e não aprofundadas, nem exaustivas ponderações sobre a legislação aplicável aos contratos de locação, neste triste momento de enfrentamento a pandemia, aliadas às peculiaridades de cada comércio e respectivas limitações impostas, recomenda-se cautela e bom senso.
Cautela, a uma, para não decidir e negociar de forma açodada porque não se conhecem as consequências futuras; a duas, repactuado o aluguel quanto a valor e/ou vencimento a possibilidade de voltar a repactuar se esvai.
Já se disse “direito é bom senso”. As regras citadas, assim como princípios de direito civil e constitucional conduzem à solução equilibrada. Prejuízos há e haverá em razão da pandemia. Mostra-se adequado suportá-los de modo equitativo, distribuído e partilhado, não se permite onerar apenas um dos contratantes em benefício do outro. Tal como na ocasião de celebração, o contrato deve agora também ser conveniente (ou o menos inconveniente possível) a ambos para preservação e continuidade do negócio.
Como as especificidades de cada negócio e respectivas consequências da pandemia devem ser considerados individualmente, a negociação entre locadores e inquilinos, preferencialmente bem assessorados, deve individualizar soluções para cada contrato.
Por fim, não se vislumbra aos contratos de locação não residencial e, portanto, não protegidos pela legislação consumerista, qualquer necessidade de ação estatal. Ao passo que para o coronavírus ainda não há remédio, para as mazelas dele decorrentes ao comércio os remédios jurídicos existem e devem ser usados pelos contratantes em primeiro momento independente de amparo judicial, útil apenas depois de esgotadas todas as tentativas de composição por concessões mútuas.
1. https://cev.fgv.br/sites/cev.fgv.br/files/u91/2020-03-20_impacto_covid-19_no_varejo_br_divulgacao.pdf
2. https://www.infomoney.com.br/economia/abrasce-esclarece-que-nao-havera-isencao-de-aluguel-em-shoppingapenas-adiamento/
3. https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/03/25/iguatemi-suspende-aluguel-de-marco-paratodos-os-lojistas.html
4. https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/juiz-df-autoriza-lojista-shopping-suspender-aluguel-minimo
5. https://www.migalhas.com.br/quentes/323379/lojista-nao-pagara-aluguel-mensal-minimo-e-fundo-de-propagandaenquanto-shopping-estiver-fechado
6. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8081779&ts=1585934129559&disposition=inline
7. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8081779&ts=1585934129559&disposition=inline
BIBLIOGRAFIA
- AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo : Saraiva.
- LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Resolução por onerosidade excessiva. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, 140, Ano XLIV.
- PEREIRA, Caio Mário da Silva. Teoria Geral das Obrigações, Rio de Janeiro: Forense.
AUTOR
Érlon Pilati., advogado de entidades associativas, palestrante, bacharel em Direito pela UFPR, especialista em Direito Contemporâneo e Direito Médico, membro da Comissão da Saúde da OAB/PR, Diretor da Pilati Advocacia, atuação em Direito Empresarial, Imobiliário, Médico e Odontológico, Consultor jurídico e científico da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética.