O tema se complexifica com a digitalização dos canais de venda, centralização de dados e disputas por ativos intangíveis no encerramento contratual.
Por: Mariana Tavares
O franchising brasileiro, setor que movimenta mais de R$ 240 bilhões anuais, é regulado por legislação específica, mas ainda enfrenta zonas cinzentas, entre elas, a titularidade da clientela formada nas unidades franqueadas. O tema se complexifica com a digitalização dos canais de venda, centralização de dados e disputas por ativos intangíveis no encerramento contratual.
A Lei nº 13.966/2019 exige transparência na Circular de Oferta de Franquia, mas não disciplina expressamente a quem pertence o fundo de comércio construído ao longo da operação. Já o Código Civil, no artigo 1.142, dispõe ser “estabelecimento” todo o complexo de bens necessários à atuação da atividade empresarial, sem, contudo, fazer distinção quanto ao modelo de negócio.
Na prática, muitos contratos atribuem ao franqueador a titularidade exclusiva do fundo de comércio. Tribunais vêm validando cláusulas que impedem o franqueado de alienar o ponto comercial ou usá-lo como garantia. A justificativa é que a clientela resulta do prestígio da marca e da padronização da rede. No entanto, cresce o número de decisões que admitem, em hipóteses específicas, a existência de clientela autônoma e indenização por perda do ponto, desde que haja prova de esforços e investimentos locais, desvinculados da estrutura padrão da franquia.
A questão se agrava quando o franqueado faz ações de marketing por conta própria, além das campanhas da franqueadora, frequentemente custeadas com taxas obrigatórias de propaganda. Se o esforço individual gera fidelização, há argumento legítimo para se reconhecer participação na construção da clientela.
Com a Lei Geral de Proteção de Dados, LGPD, é essencial definir, no contrato, quem é o controlador e o operador das informações pessoais dos consumidores. Em muitos casos, o franqueado interage diretamente com os clientes, mas não retém acesso aos dados após o fim do contrato, o que impede a continuidade da relação comercial. A omissão contratual pode gerar responsabilização solidária entre franqueador e franqueado, inclusive por uso indevido ou vazamento de dados.
Esse cenário recomenda revisão dos contratos de franquia, com cláusulas claras sobre a titularidade da clientela, uso de dados e eventual compensação pela perda do ponto. A inclusão dessas previsões na COF e no instrumento contratual reduz litígios e favorece a estabilidade do modelo.
Diante da lacuna legislativa, cabe à jurisprudência avaliar, caso a caso, o equilíbrio entre o prestígio da marca e o esforço do operador local. Também é oportuno que entidades como a Associação Brasileira de Franchising avancem em diretrizes autorregulatórias, conferindo mais previsibilidade à relação entre franqueador e franqueado.
Em tempos de economia digital, a disputa pela clientela vai além da localização física. Trata-se da definição de quem realmente constrói valor em redes padronizadas. A ausência de regras claras sobre o fundo de comércio no franchising é um passivo jurídico que o mercado não pode mais ignorar.
Mariana Tavares
é advogada associada do escritório David Nigri Advogados, pós-graduanda em Direito Financeiro e Tributário pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), com atuação focada em franchising e contratos empresariais.